Há muitos anos, quando ainda trabalhava como produtora de televisão, fui assaltada na Avenida Brasil, aqui em São Paulo capital, por um moleque drogado que mal conseguia abrir os olhos e segurar a arma. Por sorte eu havia recebido um dinheiro e pude gentilmente passá-lo todo ao garoto, que berrava no meu ouvido enquanto enfiava a arma por uma frestinha do vidro aberto.
Depois disso meu pai gastou fortunas para blindar os carros da família, como se nós fôssemos filhos do presidente dos Estados Unidos ou algo assim. Acho que nunca fiquei tão triste em ver uma boa grana sendo gasta.
Depois de algum tempo saí de São Paulo e voltei para o interior, não livre da violência, mas ao menos numa situação bem mais amena.
E voltei mais uma vez para São Paulo, dessa vez já sem o carro blindado e também sem grana para isso.
Desde então passei por ataques de pânico nas marginais, cada vez que o trânsito parava de vez (quase todos os dias, diga-se de passagem), vendo aquele bando de motoqueiros passando pelo meu carro buzinando e chutando os espelhos e pensando "será que vão me assaltar?". E escondia a bolsa debaixo do banco, o celular debaixo da perna, ficava apenas nas filas do meio e tentava manter uma distância do carro da frente caso eu precisasse fazer qualquer manobra. Todos os dias a mesma coisa.
E daí entrava em São Paulo e o pânico vinha nos semáforos e mais uma vez tentava montar uma estratégia para me sentir minimamente protegida.
Cansada dos ataques, mudei com meu marido para uma casa a um quarteirão de distância do escritório. O medo agora era de ser assaltada e até mesmo baleada a pé, como já vi uma vez aqui na rua do escritório e duas vezes na porta do prédio em que trabalho. Já evitava andar à noite e quando o fazia, porque o bairro é bem gostoso para se caminhar, era com o coração aos pulos. Medo de andar com os cachorros nas ruas porque cachorros também são sequestrados. Medo de andar com a bolsa pendurada no braço ou no ombro. Medo de usar o celular. Medo de que alguém me siga e fique conhecendo os meus passos. Medo de que alguém invada a casa. Medo durante o trajeto que meu marido faz do traballho pra casa e vice-versa.
Semana passada fui pega de supresa, numa tentativa de golpe. Por sorte achei um boteco cheio de bêbados para me abrigar.
Hoje o prédio em que um amigo mora foi invadido por 20 homens fortemente armados. Por sorte as filhas dele não estavam em casa e não precisaram, aos 9 e 6 anos de idade, presenciar essa violência. Mas meus sobrinhos, alguns anos atrás, já presenciaram. Por sorte ninguém acabou machucado ou morto.
Meu pai já foi assaltado no trânsito. Por sorte só levaram seu dinheiro. O mesmo com a minha mãe. O mesmo com o meu marido. Só levaram o dinheiro, o carro, enfim, só bens materiais, graças a Deus!
Só que eu não dou graças a Deus por essas coisas e nem acho que isso é sorte. Isso é uma afronta, uma violência inaceitável e eu estou com a sensação de que estou esperando a morte violenta e injusta de alguém amado para então poder parar de ouvir "por sorte e graças a Deus só levaram bens materiais", como se um vagabundo qualquer tivesse o direito de levar bens comprados com o nosso trabalho. A sociedade não é justa, em um pouco, mas nós também não temos culpa! Desde quando essa diferença social legitima a violência? Desde quando isso nos conforta? Ouço cada argumento e cada agradecimento nesses momentos que estou com a sensação de estar sozinha, sem entender o mínimo que se passa com as pessoas. Tem uma ordem invertida aí e meu inconformismo faz parecer que a inversão é minha. Será???
Eu estou com medo, confesso. Muito medo. E estou percebendo que esses anos todos em São Paulo me transformaram numa pessoa pior: descrente, agressiva, mais impaciente e intolerante. Meninos de rua hoje já não me geram piedade, mas raiva! Estou com medo também do quanto tudo isso ainda irá me afetar se eu continuar aqui.
Pessoas me dizem que São Paulo é assim mesmo, que é preciso se adaptar, mas eu me recuso. Eu ainda acredito que o ser humano merece viver num lugar sem ter que pensar o tempo todo na violência, a cada esquina que passa.
Estou confusa. Estou com medo. Muito medo.
segunda-feira, 2 de março de 2009
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2 comentários:
Lu, esse conformismo com a situação foi o que mais me assustou em Sampa. Porto Alegre está longe de ser uma cidade segura, mas, não sei, aqui eu não sinto essa amargura toda de que falas e que eu via todos os dias quando saía de casa. Vem pra Porto! ;-)
Já morei em São Paulo, já estive em Belo Horizonte, já estive em Vitória. Já estive em Salvador. Todas essas são capitais, centros urbanos. Já morei no Rio de Janeiro, capital, agora moro em uma cidade periférica ao Rio, chamada Nilópolis, bem a porta da Baixada Fluminense, entrada para um mundo meio que abandonado e cheio de medo (já foi bem pior!), mas nada muito distante, uns 20 ou 30 km longe do centro da capital. Acho que o Rio virou um valão, um caldeirão de coisas ruins. De maravilhosa hoje em dia, só que sobrou da sua geografia... Já estive em várias cidades do interior de São Paulo, de Minas, de Espírito Santo e daqui do estado do Rio... e em todos os lugares, ao invés de reparar sua arquitetura, seu urbanismo, seus teatros, seu ar (se respirável ou não!)... eu reparava a quantidade de gente pela rua, não reparava as pessoas, e sim se gente de rua ou não, se moradores de rua, se mendigos, se marginais, se desocupados, como se meu “olhar clinico” os pudesse detectar. Já era o medo instalado, era o medo inerente a pele, era uma síndrome que lutei para não me tomar conta, melhorei graças a minha força de vontade, não quis e nem procurei ajuda profissional. Ainda tenho muito medo de entrar em ônibus, mas entro, de andar de trem, mas ando, de pegar um taxi, mas pego. Já não tenho carro por medo, e como esse ainda não consegui extirpar, impus uma desculpa ecológica para mim e para outros que me perguntam por que não compro um automóvel: “monóxido de carbono, é por causa do monóxido de carbono”, eu digo, eu me engano, eu me convenço. Adquiri um medo pelo próximo que é de assustar, tanto é que eu estou de férias e estou pensando em ir para algum lugar, mas não vou por medo. Medo, isso é o que dá medo; simplesmente o medo... ”é o medo de ter medo de ter medo,” como já cantava tão bem a Legião Urbana, na voz do seu poeta, Renato Russo. A melhor coisa para ser fazer contra o medo, é confessar o medo... pois isso já é um ato de coragem! Eu to chegando lá... e com certeza, eu espero, você nunca vai chegar a esse estágio, pois sinto que há uma coragem de gladiadora em você, ok?
Um abraço!
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