sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Talita

Ontem, num desses encontros inesperados, mas desejados, que a vida nos proporciona, voltei meu pensamento para o ano de 1997, quando trabalhei como produtora de um programa feito pela TV Cultura para o MEC.

Devíamos gravar os vídeos que acompanhariam os livros com os novos parâmetros curriculares nacionais. As aulas que apareceriam nos vídeos seriam ministradas por professoras contratadas pelo próprio MEC e a idéia era montar uma sala de aula no estúdio e trazer as crianças de uma escola estadual da região para participar das gravações.

Analisando melhor a logística, ficou decidido que o ideal seria transformar uma sala de aula de verdade num estúdio, usando ainda as outras locações de uma escola real, como quadra, refeitório, laboratórios e pátio. A partir dessa decisão, fomos buscar uma escola que aceitasse nos receber durante alguns meses e encontramos uma na Lapa, em São Paulo.

Durante o período de gravações, escolheríamos aleatoriamente algumas crianças para participar das nossas aulas, ministradas pelas professoras, geniais, aliás, contratadas pelo MEC.

Foi uma experiência enriquecedora pra mim, e tenho certeza que para toda a equipe. Aquelas crianças, taxadas de burras e preguiçosas pelas professoras “de verdade”, se transformaram em crianças inteligentes, espertas, curiosas e alegres. Tudo o que receberam foi uma chance.

Essas crianças entraram com a nossa equipe no laboratório de ciências da escola pela primeira vez. Por que não o usavam antes? Porque poderiam quebrar as coisas. Pela primeira vez entraram na sala de artes. E não entravam antes para não sujar e estragar a sala.

Lembro de um garotinho que gaguejava, criado pelo avô que treinava pombo-correio (sim, em 1997!), que foi colocado pela primeira vez, por uma das professoras do MEC, na frente de um quadro: Guernica, do Picasso. Aquela confusão de imagens pretas e brancas, mas quando a professora perguntou o que eles sentiam ao ver aquele quadro, aquele garotinho, com seus 7 ou 8 anos, respondeu: tristeza. Se ele sabia que aquele quadro retratava uma guerra? Claro que não! Não esqueço, e espero nunca esquecer, da carinha dele, que desabrochou ao se deparar com a arte.

Mas de todas as crianças, foi a Talita quem mais ficou na minha mente e no meu coração. Uma baianinha gordinha e charmosa, com uns 8 anos, que marcou a todos com sua esperteza, inteligência, simpatia e alegria. Talita nos contou que nasceu na Bahia e que lá a “praia era de todos”, mas que ela não falava a língua baiana. Que língua, Talita?, perguntamos. Ela, com todo o seu charme, respondeu: aquela assim, ó: óxentebichinho.

No último dia de gravação, havíamos preparado uma festa que contaria com a presença do então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza. As crianças receberiam uma homenagem da equipe, das professoras e do Ministro, mas logo pela manhã, quando cheguei na escola, não encontrei justamente a Talita.

Saí perguntando por ela, mas estava claro que ela havia faltado. Depois de muita insistência, consegui o endereço da sua casa com a diretora e me mandei pra lá.

Logo ao chegar, num conjunto de várias casinhas grudadas umas nas outras numa rua estreita da Lapa, vejo a Talita andando de bicicleta. Desci correndo do carro, a festa já ia começar, e pergunto por que ela não foi pra escola. A resposta dessa criança, especial como toda criança, foi:

- Porque eu não queria falar tchau.

Abracei a Talita, expliquei que havia uma festa na escola e que o Ministro da Educação, que felizmente ela não sabia quem era nem o que fazia, estava esperando por ela. Mas o título era imponente e ela entendeu.

Ela ficou eufórica, mas estava trancada pra fora de casa, pois a mãe havia saído pro trabalho e a Talita estava sob os cuidados da vizinha. Implorei pra essa mulher me deixar levar a Talita pra escola, mostrei meu crachá da TV, prometi trazê-la de volta, enquanto a Talita apenas dizia: o Ministro está me esperando! O Ministro! O Ministro da Educação!

Finalmente, a vizinha concordou e cheguei na escola esbaforida, ao lado da nossa aluna e atriz especial. Consegui tirar uma foto até, bem agarrada com a Talita.

Hoje, a Talita já deve ter uns 20 anos. Espero que continue esperta, charmosa, inteligente e alegre e que tenha crescido com a certeza de que é tudo isso, apesar de tanta gente ter lhe dito o contrário.

Um beijo, um beijo grande, querida Talita!

Um comentário:

Murillo diMattos disse...

Entrei no seu blog como sempre faço, e por muitas vezes não crio um comentário de imediato, pois gosto de perceber o texto lido, a essência do porquê tê-lo escrito, e por afinidades de assuntos ou por sensibilidade à tona, me vêem os comentários, uns simples e pequenos mais de sinceridade verdadeira (caso o contrário não seria sinceridade, né? É as vezes eu erro feio, tchan!) Outros se não me policiar acabam virando testamentos, esse que agora escrevo se não tomar cuidado vai tomar conta do seu blog... o que não quero de jeito nenhum, ele é seu por merecimento, não por você tê-lo criado, afinal isso seria o óbvio, mas sim por quê você soube ocupá-lo de uma forma tão especial, com textos como esse, que mostra uma pessoa com um olhar virado as criticas que devem ser feitas; atitudes para que o quê foi criticado tenha sua funcionalidade correta e um carinho, que eu espero que você acredite em mim, quando digo essas coisas, me faz correr lágrimas do rio seco que meus olhos se tornaram... quando você introduz a Talita no seu texto, você nos leva ao seu passado de uma forma que parece que estivemos por lá e presenciamos tudo isso. Seu gesto com a Talita, a sua preocupação me responde a pergunta silenciosa que faço sempre quando caminho o ponteiro de meu mouse para o item de favoritos, e lá (como já dito em um rabisco meu e postado em meu blog (e no seu) em sua homenagem) entre os sites de música e poesia te acesso. A pergunta é a seguinte: por que essa necessidade, quase que viciosa, em te ler, Lu Gerbovic? Como já disse acima, você responde fácil, com textos como estes. Obrigado por isso, acabei de perceber que seus textos são poços artesianos para mim, e vício ou não, que eu tenha essas overdoses lacrimais, sempre!

Abraços!...

Abraços!...