quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Resgate de uma época que já passou. Ainda bem!

Recebi uma crônica escrita por uma pessoa muito querida, que está fazendo cada vez mais parte da minha vida e me fazendo muito feliz por isso. A crônica me fez lembrar uma que escrevi em 2007 e ao resgatá-la lembrei-me de como sofria no trânsito de São Paulo, o que hoje, ainda bem, ainda bem, ainda bem, acontece raramente. Outras fontes de angústia, porém, não mudaram, mas sigo lutando!

Segue:

Depois de quase matar ou morrer no trânsito de São Paulo cheguei (atrasada, claro) no consultório da dermatologista, onde me submeteria a uma limpeza de pele às sete e meia da manhã, único horário que restava na minha jornada de doze horas de trabalho e isso porque era o dia do rodízio do carro (que eu acabei furando e conseqüentemente sendo multada) e poderia me dar ao luxo de chegar no escritório depois das dez.

Mas o importante é que cheguei, pensei. Cheguei descabelada, irritada, bufando, xingando o pobre do Henry Ford que inventou a produção em série de veículos e me perguntando que raios estou fazendo com a minha vida. O importante é que cheguei viva e sem nenhum assassinato nas costas, reformulei.

Ao olhar para minha cara e sentir minha respiração a esteticista me aconselhou:
- Relaxe...

Já que havia chegado, resolvi que iria aproveitar e relaxar. Afinal, esses momentos se tornaram raros na minha vida.

Deitei na maca, bastante confortável por sinal, fechei os olhos e nesse exato momento a esteticista colocou um som ambiente: cantos de pássaros. Imediatamente comecei a pensar na tristeza daquela cena e tentei me lembrar qual foi a última vez que ouvi o canto de um pássaro ao vivo. Não consegui. Nem sei se voltarei a ouvir um dia. E eu gosto de canto de pássaros ao vivo. Eu gosto de pássaros, gosto de bichos, gosto de mato, gosto de céu azul, gosto de estrelas, gosto do nascer e do pôr do Sol e não sei se verei tudo isso de novo porque passo os dias trancada no carro ou no escritório. Será que estou fadada a ouvir pássaros cantando apenas em CD? E enquanto eu pensava em tudo isso e ficava cada vez mais tensa e triste a esteticista continuava dizendo “relaxe”. E como eu podia relaxar diante dessa tragédia toda?

Mas eu precisava relaxar e resolvi fazer um esforço ainda maior. Foi quando começou a parte dolorida da limpeza de pele: a espremedura, quando transformam o seu rosto num verdadeiro limão. Aí não dava mesmo para relaxar, ainda mais quando comecei a pensar em todos os rituais de tortura aos quais nós mulheres nos submetemos em nome de um padrão de beleza imposto já nem sei mais por quem: essa maldita limpeza de pele, a torturante depilação (eu confesso qualquer coisa diante daquela cera quente), que por sinal preciso fazer, as idas semanais à manicure, ainda que eu tenha faltado nas últimas quatro semanas, a dieta que não faço, mas que deveria fazer e a academia que paguei e não estou freqüentando. Isso sem mencionar a vaidade intelectual que me faz trabalhar feito uma condenada e estudar feito uma burra e que juntando tudo não me sobra tempo para ser feliz.

Conclusão: quanto mais era espremida, mais pensava, mais culpada me sentia e mais tensa ficava. Já estava a ponto de me atirar pela janela quando essa parte do tratamento acabou.

- Agora relaxe, ouvi novamente.

Eu estou tentando, minha filha, estou tentando, mas como posso conseguir com essa pressão???, foi o que apenas pensei em responder.

Nova tentativa de relaxamento, diante da melhor parte da limpeza de pele: a massagem facial.

Por Deus e pelos anjos, quem inventou a massagem? Para mim é o que há de mais divino nesse planeta e sempre depois de uma massagem eu tenho vontade de abraçar o massagista e agradecê-lo por esse ato de amor. Foi nesse ponto que parei pra pensar se eu não deveria ser massagista e passar a vida praticando o bem, pois nesse momento o único bem que pratico é para o acionista da empresa em que trabalho. Por que não passar meus dias fazendo massagem nos outros e deixando as pessoas felizes, trancada numa salinha em silêncio, ouvindo música clássica (eu não iria jamais colocar o som do canto dos pássaros, pois já deu pra perceber o quanto me fez mal)? Por que me deixar ser explorada pelo acionista? Afinal, qual a minha missão?

Pelo jeito fui ficando ainda mais tensa, pois no meio dessa crise existencial ouvi:
- Você precisa relaxar.

Assim mesmo, firme como uma ordem.

Tudo bem, agora eu vou relaxar, prometi para mim mesma.

Fim da massagem (ótimo, já não preciso mais pensar para que raios nasci) e anúncio da próxima etapa:
- Agora vou passar uma máscara relaxante de camomila e maracujá (apesar de eu estar mais pra Prozac) e você vai fechar os olhos e relaxar (ela devia estar cansada de me pedir pra relaxar, pobre mulher).

Tudo bem, agora não vai ter jeito de eu não relaxar, pensei já quase rezando.

A santa da esteticista começou a dar pinceladas no meu rosto com a máscara relaxante, que tinha cheiro de plástico de boneca. Mas qual boneca tinha esse cheiro? A Kátia, a primeira boneca que minha avó materna me deu? Coitadinha da minha avó, que fez tanto sacrifício pra me presentear com bonecas durante toda a minha infância. Lembrei de sua carinha feliz quando via a minha alegria com aquelas bonecas todas e senti muito a sua falta. Mas a Kátia era feita de um plástico vagabundo que não devia ter esse cheiro gostoso. Será que era a Guigui, que também ganhei da minha avó? Acho que não. Também não era o Boneco, o primeiro (e único, acho) boneco menino que tive. Ah, devia ser a “Minha Vida”, que eu batizei de Carolina e de quem cuidei por tantos anos. Aquele plástico sim tinha um cheiro bom. Mas podia ser também o cheiro da Barbie ou da Susy. Qual boneca era???

Fiquei lá lembrando das bonecas e não consegui descobrir qual delas tinha esse cheiro. O que consegui, no entanto, foi constatar que a infância passa muito rápido e eu fiquei com saudades até do útero da minha mãe, pois a limpeza de pele ia chegar ao fim e eu teria que encarar aquele trânsito de novo até o escritório e lá dentro agüentar o chefe, a pressão e o mau-humor de todo mundo, inclusive o meu.

A angústia foi aumentando e eu já estava para chorar quando ouvi:
- Pronto, acabou. Conseguiu relaxar?

- Consegui. Obrigada.

Um comentário:

Lone D®@gon disse...

...que é isso, essa coisa? Viajei! Flutuei, mas de tal forma, que mesmo com toda a pressão, que a sua amiga (pena que você não pós o nome!), passou tão bem, e mesmo eu não estando bem hoje, pois um amigo foi assassinado, eu consegui esquecer esse meu vazio. É por isso que amo as palavras!!!! Que coisa?! Só podia ser sua amiga mesmo... Agradeça a ela, por ter me feito lembrar de pássaros. Por ter me feito deliciar com a sua prosa. Por ter me transportado via palavras (tão bem colocadas!) a uma outra vida, a um outro mundo, mesmo que próximo ao meu, mas com realidades diferentes. Agradeço a ela, e a você também, pois hoje eu precisava muito disso... de relaxar, e consegui.
Seu blog é como uma caixa de Pandora, no bom sentido, pois sempre encontro aqui uma surpresa. Um abraço as duas....